Por Nico Anfarri*
Foto Josh Hedges
MMA não se tornou o esporte que mais cresce no mundo apenas por ser diferente, por promover um combate mais justo entre as artes ou tentar responder à pergunta que tantos de nós tínhamos na cabeça quando pequenos sobre qual o maior lutador do planeta. MMA se tornou uma febre porque, simplesmente, é divertido demais de assistir. É emocionante, movimentado e violento. Esse UFC 123 lembrou a alguns com a memória um pouco mais fraca, já contagiados pela péssima qualidade de edições passadas, porque amamos esse esporte. Também levantou uma questão que parece nunca ser respondida sobre porque os critérios de julgamento que deveriam vir em auxílio ao combate acabam mais complicando. Deveriam ser o óleo que lubrifica as engrenagens, mas parece a chave de fenda que caiu ali e travou a máquina.
Lyoto Machida x Quinton Jackson
Lyoto Machida perdeu essa luta contra Quinton na decisão dos jurados. Mas, diferente do que muitos da imprensa e fãs vêm dizendo, ele não foi roubado ou garfado. Foi sim mais uma vítima do sistema de pontuação obsoleto e complicado de entender, que muitas vezes faz uma vitória justa tecnicamente parecer obra da má vontade dos jurados. Temos que tentar analisar os dois primeiros rounds, já que o terceiro foi claro do brasileiro. Lyoto tem um estilo complicado de pontuar. Não duvido que jurados mais comprometidos com justiça em suas papeletas tomem alguns lexotans na noite anterior.
Em MMA são quatro os critérios de avaliação dos rounds baseados nas normatizações da NSAC (Nevada State Athletic Commission):
1) Controle de octagon é medido basicamente pelo lutador que dita o ritmo e local aonde a luta se desenvolve, no caso, teria sido Quinton que nos dois primeiros rounds buscou a luta e ainda conseguiu uma queda.
2) Outro quesito são socos claros. Aqui entram também chutes, cotoveladas ou qualquer ataque em forma de impacto ao corpo do adversário. Nos dois primeiros rounds Machida acertou chutes na perna, alguns socos sem grande impacto no rosto e uma joelhada forte. Quinton acerou alguns socos na cabeça, várias pequenas joelhadas, pisões e socos curtos contra o corpo na hora do clinche.
3) Outro quesito é luta agarrada, que vai de quedas a Jiu-Jitsu. Mas há um defeito no sistema. Em nenhuma regra é colocada textualmente um quesito que já é levado em conta na pontuação de todas as lutas faz anos: o clinche. O lutador que segura o outro contra a grade, em pé, desferindo golpes por usar essa posição agarrada de modo agressivo, é bem considerada pelos juízes. Apesar de que na regra escrita essa posição nem é citada. Mas se eles a consideraram é ponto para Jackson.
4) O último critério é agressividade. Caminhar para frente, defender quedas, acertar golpes que causam dano. Quinton andou para frente e conseguiu uma queda, mas Lyoto defendeu outras tantas. Os juízes consideraram que o Lyoto defendeu as quedas ou que Jackson queria prendê-lo nas grades para danificar seus pés e joelhos? Como saber? Foi uma tática usada por Rashad contra o mesmo Rampage, Carwin contra Mir e etc.
Até no site FightMetric, que analisa a luta round a round, marcando tentativa e erro de golpes, potência e etc, é difícil nos dois primeiros rounds perceber o vencedor. Ao final da análise técnica e matemática que o site promove, há dois resultados. Na avaliação round a round, eles dão empate, na avaliação da luta como um todo, vitória do Lyoto.
Numa avaliação round a round, a questão é quem vence mais rounds. Se um lutador vence dois rounds por uma super mega micro vantagem quase invisível, pronto, ele tem dois rounds. Se o outro lutador o domina completamente em apenas um, ficam dois rounds a um. Se essa luta fosse no PRIDE seria uma vitória heróica do Lyoto que contaríamos para sempre, como tantas outras poderosas que aconteceram naquele ringue. Mas no UFC, Strikeforce, Jungle Fight e quase qualquer evento, ele poderia ter perdido a luta. Na minha pontuação, pelas regras atuais, eu dei empate. O ponto é que não houve erro nessa luta, houve o problema recorrente por causa de regras abstratas demais norteando um esporte baseado em fatos. Simplesmente as regras tem que ser mais claras e os juízes ex-lutadores ou amantes reais do esporte. Já seria um bom começo.
Refuto também a questão velha que sempre vem à tona sobre ele ter sido prejudicado por ser brasileiro. A imprensa nacional tem que ajudar a educar nossos fãs. Aqui muitos ainda vêem Brasil versus o mundo, mas lá fora, apesar de torcerem para seus lutadores, torcem muito mais pelo esporte. Lyoto e Shogun, dois brasileiros, fizeram o evento principal no Canadá para uma platéia eufórica e casa lotada. Rashad Evans, americano e, na época, detentor do cinturão do peso no UFC, foi vaiado o tempo todo antes mesmo de começar a luta pelo público americano, que estava em frenesi e apoiando o brasileiro Lyoto. O mesmo brasileiro que muitos aqui acham que foi prejudicado por não ser “da casa”. O americano Jason Brilz venceu no octagon a luta contra o brasileiro Minotouro, mas os juízes deram a vitória para o brasileiro mesmo assim. Quer dizer que os americanos “roubaram” para o brasileiro ganhar? MMA já rompeu as barreiras da nacionalidade. Talento, técnica e carisma já superaram o local de nascimento. A maioria do mundo já aprendeu isso, agora falta a gente.
Quinton Jackson é um guerreiro, por mais que muitos não lembrem. Foi um dos maiores lutadores de todos os tempos, super estrela do maior dos eventos, que se chamava Pride, junto com Fedor, Minotauro, Sakuraba, Wanderlei e poucos outros. Rampage admitir que perdeu a luta para Lyoto ao final só mostra que seu espírito de lutador é genuíno. Para ele, vencer de leve 10 minutos e apanhar cinco deveria dar a vitória para o adversário. Como tantas que ele conseguiu no passado. Tantas reviravoltas fantásticas que essas regras do UFC só dificultam. Quinton venceu no UFC Liddell, Handerson, Wanderlei e agora Lyoto. Só perdeu de modo controverso para Forrest Griffin e para o ex-campeão e seu nêmesis, Rashad Evans. Ainda é um dos melhores do mundo e faz luta boa contra qualquer um. Sua vitória complicou os planos de Dana White que esperava forçar Quinton a subir de peso caso perdesse e divulgar a volta do “Dragão” mundo a fora. Mesmo assim, se Jackson quiser fazer mais do que lutas duras e vencer por um fio na decisão dos jurados, vai ter que incorporar mais de seu treinamento e forma física de antigamente. Só entrar com a música do Pride não será suficiente, apesar de ter sido uma bonita homenagem.
Lyoto é um lutador único. Seus movimentos e estilo pareciam impossíveis de se traduzir em vitórias numa competição tão real quanto MMA e luta a luta ele mostra que está num nível diferente da maioria. Mas sua tática depende demais de esquivas e movimentação, e isso não agrada os juízes. Ele precisa ser contundente na hora da luta. Não adianta aparecer no site depois que ele acertou mais socos. Não é uma competição definida apenas por quem acerta mais golpes. Não é boxe amador. Pode bailar e caminhar para trás quanto quiser, mas precisa causar dano real ao atacar, como fez contra Rashad, Thiago, Ortiz e etc, ou seu estilo lutará contra ele nas papeletas dos homens de terno do lado de fora. Quase como se tivesse que provar em todo round que não está apenas fugindo, e que todas as saídas laterais e gritos de Bruce Lee tem como meta um ataque devastador, ou vai parecer apenas um floreio. Lyoto é um dos lutadores que mais vendem pay-per-view, tenho certeza que muitos o vêem esperando desferir um “hadouken” a qualquer momento. Machida ainda deve lutar pelo cinturão de novo, mas precisa parar de lutar para pontuar. Todos seus adversários vão tentar superar sua esquiva e técnica com agressividade e violência. Ou ele volta a ser contundente em todos os momentos, por mais que ache estar na frente nos números, ou vai amargar ainda outras derrotas azedas e polêmicas como essa.
BJ Penn x Matt Hughes
Em 2008, Matt Hughes ameaçou abandonar a carreira após ser desmantelado por Thiago Alves. Três lutas e três vitórias depois, sobre lutadores medianos, ele achou que poderia fazer frente a uma das lendas do esporte. Serra, Renzo e Cachorrão são excelentes e inquestionáveis lutadores de Jiu-Jitsu, mas nunca foram expressivos em MMA e serviram apenas como formol que o conserva dentro de um vidro para ser estilhaçado nesse UFC 123. Mas quem pode culpá-lo por sonhar em voltar a ser campeão? Rico, casado, integrante do hall da fama do UFC, só a glória do cinturão o motiva. E eu não faço pouco de grandes sonhos. Mas a única chance dele vencer BJ seria se o havaiano chegasse todo sujo de areia, de sunga e com uma prancha de surf debaixo do braço.
Fora a derrota vexatória na segunda luta contra Frank Edgar e a prepotência de entrar gordinho para enfrentar o campeão St. Pierre, Penn vem riscando seus adversários da lista como um samurai cortando bambu com uma Hattori Hanzo. Penn, como todo gênio, incendeia frente ao questionamento e a derrota aonde outros abaixam a cabeça e desistem. Para nós, nesse UFC 123, ele lutou contra Hughes, mas em seus olhos só via refletida a imagem de Frank Edgar ou St. Pierre. A real motivação é a vingança sobre os dois únicos homens que o venceram duas vezes. Quando Penn se sente provocado sua esquizofrenia aflora e seu lado maníaco entra no octagon. Ele se torna um cara louco por vitória e com todos os conhecimentos de como conseguir, de como nocautear ou finalizar qualquer um. Isso para nós é um barato de assistir, mas para Hughes e tantos outros, deve dar medo. Penn atropelou Hughes em 21 segundos e como o americano não é Minotauro, foi sorte não ter acabado paralítico.
Mais do que ser nocauteado e perder a luta, Hughes saiu derrotado desse UFC 123. Não por falta de coragem ou hombridade, que ele tem de sobra, mas por dentro. Estava devastado. Não é mais um menino que se chateia, faz biquinho, mas quando chega em casa tudo fica melhor depois de um banho frio e beijinhos na namorada. È um homem realizado nas coisas que almejou e que, simplesmente, acha que esse seu último sonho não se realizará. Que ele nunca voltaria a ser campeão do UFC é fato, mas é uma pena que ele tenha percebido isso de modo tão doloroso e na frente de milhões de pessoas. Hughes é um dos maiores e merecia se aposentar de modo saudável e não com os olhos vermelhos de tristeza na frente de tantas testemunhas.
Maiquel Falcão x Gerald Harris
Quando faltam 10 segundos para terminar um round ouvimos aquelas marteladas que vem do lado de fora. É um modo de avisar ao juiz e lutadores quanto falta para acabar. Muitos usam esse tempinho para se fechar e esperar o final, outros como Maiquel Falcão encaixam um mata-leão nesse exato momento. A questão é que apenas dois segundos após a martelada, soou o gongo anunciando o final do round, quando ainda faltavam mais sete ou seis segundos. Segundos suficientes para Harris dormir e o brasileiro estrear no UFC com uma vitória por finalização no primeiro round. Mas a luta foi parada antes por um erro amador de sincronia entre o relógio da Comissão Atlética e o timer digital da transmissão do UFC.
Justiça poética foi feita e Maiquel venceu por pontos uma luta que seria impecável se tivesse lutado o último round como lutou da metade do primeiro até o final do segundo. Maiquel tem potencial para dar trabalho a muita gente, mas pensar em pontuar e cadenciar a luta logo na estreia, não é um bom sinal. Harris vai voltar a fazer lutas de card preliminar, se não acabar cortado, porque não tem muito a oferecer aos fãs mais exigentes do que disposição para apanhar e cara feia para desmerecer o vencedor (nota da redação: Gerald Harris foi demitido do UFC após a derrota).
George Sotiropoulos x Joe Lauzon:
Se Sotiropoulos tivesse uma gota de carisma que fosse ele já teria lutado pelo cinturão do peso com boas chances de ser campeão. Junto com Aoki, Toquinho e Maia, tem o melhor chão aplicado ao MMA do planeta. Agressivo também em pé é um lutador completo, mas fazer Joe Lauzon parecer um faixa-azul no chão não é simples. Venceu com uma kimura que vemos tanto em treinos mas tão pouco em MMA, aonde a maioria lutadores de Jiu-Jitsu tem medo de aplicar metade do que sabem.
Sotiropoulos está com luta marcada contra Dennis Siver, o que indica que não lutará pelo cinturão tão cedo. Siver é apenas um esforçado e é muito raro o UFC colocar uma luta entre um top e um mediano como credencial ao cinturão. Caso vença Siver, uma luta de Sotiropoulos contra Maynard, Florian, Gomi, Cerrone, Varner, Henderson ou Frank Edgar (já que de todos esses, apenas um estará como campeão do peso leve), se desenha. Mas aí sim, com contornos de desafiante ao cinturão.
*Nico Anfarri, empresário da área da saúde, analista e cronista de MMA da TATAME e criador do blog MMA Na Ponta do Queixo mmanapontadoqueixo.blogspot.com
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